Os olhos da canseira afundavam-se em Morfeu (e havia ainda tanto por fazer), mesmo assim, e já soletrando muito mal as letras, numa quase dislexia de intelecto, puxou para trás o cabelo irritante, mas não selvagem como alguém dizia e fez não sei o quê.
Levantou-se, pegou no cachecol cor de diferente, enrolou-o à volta do pescoço, bateu com a porta, desceu as escadas e saiu para o frio.
Na racionalização, já tinha chegado aos Aliados (só porque lhe apetece ir lá), disse qualquer coisa ao ardina da esquina, partilhou o movimento das idas e vindas de S. Bento e deixou-se levar rua abaixo, puxada pelo cheiro da Ribeira. Passou pelas Flores, e lá chegada sentou-se perto do Douro. Contou 183 dias, meio ano, como as ovelhinhas que o outro sussurra a contar os “Amo-te”.
- Toca, meu amor, toca.
- Toco tudo o que tu quiseres.
- Ah?! Tu aqui?!
- Estou onde tu quiseres que eu esteja, a imaginação é tua.
- Mas tu és real. És, não és?
- Se tu sabes que sim para que é que perguntas? Para deixar isto bonitinho? Um pseudo-fingimento prosaico para benefício de uma estética quase inexistente? Diz lá que me amas para haver um momento lamechas e deprimente.
- Não digo!
- Então não digas.
- Oh, mas eu amo-te.
- Eh eh, já sabia. Eu também.
- Tu também o quê?
- Eu também…
- Ah, está bem.
- Vamos embora que aqui está frio?
- Vamos sim.
Ele levantou-a, pô-la debaixo do braço e aqueceu-lhe o nariz com um beijinho. Ela merecia, afinal, quase lhe tinha estragado a queridice intelectualizada.
- Vai tocar, amor, vai tocar que o Django já está a acabar e amanhã é um novo dia. Boa noite.
E adormeceu.