terça-feira, 28 de outubro de 2008

183 Ovelhinhas

Os olhos da canseira afundavam-se em Morfeu (e havia ainda tanto por fazer), mesmo assim, e já soletrando muito mal as letras, numa quase dislexia de intelecto, puxou para trás o cabelo irritante, mas não selvagem como alguém dizia e fez não sei o quê.

Levantou-se, pegou no cachecol cor de diferente, enrolou-o à volta do pescoço, bateu com a porta, desceu as escadas e saiu para o frio.

Na racionalização, já tinha chegado aos Aliados (só porque lhe apetece ir lá), disse qualquer coisa ao ardina da esquina, partilhou o movimento das idas e vindas de S. Bento e deixou-se levar rua abaixo, puxada pelo cheiro da Ribeira. Passou pelas Flores, e lá chegada sentou-se perto do Douro. Contou 183 dias, meio ano, como as ovelhinhas que o outro sussurra a contar os “Amo-te”.

- Toca, meu amor, toca.

- Toco tudo o que tu quiseres.

- Ah?! Tu aqui?!

- Estou onde tu quiseres que eu esteja, a imaginação é tua.

- Mas tu és real. És, não és?

- Se tu sabes que sim para que é que perguntas? Para deixar isto bonitinho? Um pseudo-fingimento prosaico para benefício de uma estética quase inexistente? Diz lá que me amas para haver um momento lamechas e deprimente.

- Não digo!

- Então não digas.

- Oh, mas eu amo-te.

- Eh eh, já sabia. Eu também.

- Tu também o quê?

- Eu também…

- Ah, está bem.

- Vamos embora que aqui está frio?

- Vamos sim.

Ele levantou-a, pô-la debaixo do braço e aqueceu-lhe o nariz com um beijinho. Ela merecia, afinal, quase lhe tinha estragado a queridice intelectualizada.

- Vai tocar, amor, vai tocar que o Django já está a acabar e amanhã é um novo dia. Boa noite.

E adormeceu.