sexta-feira, 27 de abril de 2007

Merda

Nem a loucura do amor, da maconha, do pó, do tabaco e do álcool
Vale a loucura do ator quando abre-se em flor sobre as luzes no palco
Bastidores, camarins, coxias e cortinas
São outras tantas pupilas, pálpebras e retinas
Nem uma doce oração, nem sermão, nem comício à direita ou à esquerda
Fala mais ao coração do que a voz de um colega que sussurra "merda"
Noite de estréia, tensão, medo, deslumbramento, feitiço e magia
Tudo é uma grande explosão mas parece que não quando é o segundo dia
Já se disse não foi uma vez, nem três, nem quatro
Não há gente como a gente, gente de teatro
Gente que sabe fazer a beleza vencer pra além se toda perda
Gente que pôde inverter para sempre o sentido da palavra "merda"
Merda! Merda pra você!
Desejo merda
Merda pra você também
Diga merda e tudo bem
Merda toda noite e sempre a merda


Caetano Veloso

domingo, 22 de abril de 2007

D. João de Molière




D. João: "Já não há vergonha nisto, agora, a hipocrisia é o vício da moda, e todos os vícios da moda passam por virtudes. O da personagem da pessoa de bem é o melhor de todos os personagens que se possa representar nos tempos que correm, e a profissão de hipócrita tem maravilhosas vantagens.


É uma arte em que a impostura é sempre respeitada, e mesmo que a descubram, não se ousa dizer nada contra ela, todos os outros vícios dos homens estão expostos à censura, e qualquer um tem a liberdade de os atacar de alto, mas a hipocrisia é um vício privilegiado, que fecha a boca a toda a gente, e goza em repouso de uma soberana impunidade. À custa de dissimulações vemos formar-se uma associação estreita à volta de todos os que tomam esse partido;


Quem atacar um deles, vê-se a braços com todos eles, e aqueles que sabemos que agem mesmo de boa fé sobre isso, e que são conhecidos por agirem com verdade: esses, digo, são sempre os instrumentos dos outros, deixam-se completamente enrolar por eles, e apoiam cegamente manipulados as suas acções. Quantos pensas que conheço que, por este estratagema, fizeram esquecer expeditamente as desordens da sua juventude, que fizeram um escudo com o manto da religião, e sob esse hábito respeitável gozam da permissão de serem os piores homens do mundo?


Bem se pode conhecer-lhes as intrigas, e saber o que são, não é por isso que deixam de ter crédito junto das pessoas, e algumas vezes em que baixem a cabeça, soltem um suspiro magoado, e rolem os olhos, é quanto basta para reparar no mundo tudo o quepudessem ter feito. É sob este abrigo favorável que me quero proteger e pôr em segurança os meus assuntos. Não tenciono deixar os meus doces hábitos, mas terei o cuidado de me esconder, e divertir-me-ei sem grande alarido. E se vier a ser descoberto, verei sem mexer um dedo toda a cabala tomar em mão os meus interesses, e serei defendido por ela de e contra todos.


Enfim, é esta a melhor maneira de fazer impunemente tudo o que quero. Erigir-me-ei em censor das acções de outrem, falarei mal de toda a gente, e só de mim terei boa opinião."

D.João, de Molière
acto V, cena 2

D.João, de Molière no TNSJ (Teatro Nacional São João)
14 - 28 de Abril

ter-sáb 21:30
dom 16:00

domingo, 8 de abril de 2007

Tua


Mal esse amanhecer sabia que o tão esperado dia tinha chegado. Veio de mansinho e nublado, espreitando à sucapa e, esperando um amor maior que eu. Sim, porque ele havia chegado. Chegado e destruído tudo de sólido que existia em mim, mas que iria renascer o meu espírito de alma perdida. Levando a minha energia para um lugar distante. E trazendo de volta o meu eu escondido, o meu eu amante, audaz e sonhador.Tinha violado a minha alma do modo mais delicado e perfeito que já houvera. Fez com que deixasse de gostar da minha vida e passasse a venerar a dele. Decorei o seu andar, o seu sorriso, a forma de como está ausente, o seu mundo! Apenas para o ter.A minha cruel e triste fortuna não o deixou. Perdi-o nas minha mãos, tal como a areia nos escapa entre os dedos. Fiz com que os meus sentimentos saissem do mais profundo escuro e chegassem a todo o universo, para que ele me desse uma chance, mas em vão. O egocêntrismo e a exigência apoderaram-se do seu corpo e mente. Não lhe deixavam um pouco de compaixão por mim. Sei que não respondeu por ele, aliás, ainda não respondeu, fico à espera do tal sim deslumbrante para toda a eternidade.


10/2005



*Agora já não faz sentido, mas continua a ser uma recordação*

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Quarto Minguante

-A Lua é azul!
-Não é nada, é verde!
-Tu és daltónico, não distingues o azul do verde. -Oh...
O silêncio, envergonhado, também olhava para o quarto minguante.
-O céu está cheio de estrelas. Olha aquela!... E aquela!...
-Não apontes!
-Porquê?
-A Paulinha disse que não se deve apontar para as estrelas.
-Porquê?
-Diz que dá azar.
-Ah... Eu gosto de estrelas... fazem figuras.
As estrelas no céu fazem figuras.
-Fazem as figuras que nós queremos ver.
-É verdade que quando morremos nos transformamos em estrelas do céu?
-Não sei.
-Se, quando eu morrer, me transformar numa estrela, quero ficar perto da Lua, para puder vê-la bem quando estiver em Quarto Minguante.
-Tu e a mania do Quarto Minguante...
-Sabes, quando era pequena imaginava que um homem de pijama azul dormia na Lua.
-Quando eu era pequeno, formava palavras com a sopa de letras.
-Oh... não gozes.
Ele olhou-a como pela vez primeira, beijou-lhe a testa e sorriu...
-Tu não existes.


-"O Quarto Minguante enfeitiça-lhe o olhar, desde criança. E ela não sabe como é bom dormir na Lua."